sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

RAPSÓDIA EM DEZEMBRO

(Homenagem poética ao Dia Nacional do Samba)
Por: Claudio Fernando Ramos Natal-RN 02/12/2011 Brasil


No dia 02 de dezembro... Em um ano não especificado... Em um morro não identificado... Na cidade Maravilhosa...

Ivone Lara


Um homem, cercado por quatro paredes de tábuas, paredes que serviam de suporte para um enferrujado e inclinado telhado de zinco, dedilhava e balbuciava os acordes de uma singular melodia...

Candeia


O papel de pão, meio amassado, e o lápis, extremamente gasto, utilizados para registrar a letra da música, esperavam passivos sobre um caixote, que em tempos áureos, serviu ao transporte de legumes nas feiras-livres do Rio de Janeiro...



A luz da lamparina presa à parede bruxuleava, dando ao interior do barraco a sensação de um terremoto contínuo...

Clara Nunes


A esporádica visita que a brisa fazia ao sinistro ambiente, em nada melhorava a situação do solitário compositor... O deslocamento de ar provocado pela circunstancial visita, só fazia espalha no ar o fétido cheiro de querosene queimado e levantar a poeira do piso, ainda mantido em terra batida...



A música foi nascendo aos poucos e, indiferente àquele espetáculo triste e bucólico, ganhou às cercanias... Ganhando também o interior das casas vizinhas...

Leci Brandão


Vizinhos lânguidos, de rostos sulcados e olhos baços, abandonando suas casas puseram-se em marcha... Como se estivessem seguindo um cortejo, aproximavam-se cada vez mais... Dominados pelo som da música que, ao contrário de um réquiem, os convidava para uma noite de vida, poesia e alegria... Assim fazia o deus Pã com sua flauta mágica...



Um galo soltou um estridente som ao longe, que cortou a noite como um trovão de reduzida potência... Talvez entusiasmado pela dupla sorte de sua existência: nunca tivera que lutar para sobreviver no interior das rinhas, que não eram poucas na comunidade, nem jamais fora encarado como opção alimentar pelo seu proprietário, era um animal de estimação... Esses são ótimos motivos para celebrar...

Noel Rosa


Silenciosamente, provavelmente para não interferir na inspiração do compositor, todos que foram arrebatados pela magia da nova composição, foram chegando e se acomodando como podiam...



Em minutos todos os espaços foram tomados, não sobrou mais nenhuma cadeira quebrada, pedaços de troncos velhos, nem restos de tijolos que servissem de acentos... Os retardatários ficaram em pé...



Por alguns infinitos minutos o silêncio reinou absoluto, inclusive no interior do barraco... Em seguida a parte superior da porta, feita de madeiras de caixotes velhos, que estava parcialmente encostada, abriu-se totalmente...



O rosto de João foi banhado pela melancólica claridade que iluminava todo o espaço externo da residência...



Nem todos os presentes puderam ver a porta se abrir, o ângulo de alguns não lhe favoreciam a visão... Mas, mesmo assim, por conta do silêncio em que todos estavam imersos e do barulho que as enferrujadas dobradiças fizeram, não havia dúvidas... João se fizera mostrar...



Por infinitos segundos, João Gostoso mirou a silueta fantasmagórica de seus noturnos visitantes... Não teve medo... Aliás, ficou grato por todos estarem ali... Ao longo de sua existência nunca fora muito bom em granjear amigos... Seu quadro social só fez agravar suas frustadas tentativas em relacionar-se com o outro...

Clementina de Jesus


A lua cheia o ajudou na tarefa de identificação dos presentes... Mas João não carecia dessa benevolência da natureza, conhecia bem cada um de seus vizinhos, poderia reconhecê-los de olhos fechados, bastando que para isso fize-se bom uso de seus outros quatro sentidos... Porém, havia algo de estranho... Não sabia o quê... Nem o porquê...



Lábios começaram a entreabrir-se, vários tipos de dentes: postiços, brilhantes e amarelados, começaram a refletir o prateado que reinava na noite... João, depois de retribuir os sorrisos recebidos, sumiu da porta por instantes, para em seguida irromper abruptamente quintal a fora...



Nas mãos, João trazia uma parafernália de instrumentos de percussão... Todos foram colocados religiosamente no chão da pequena propriedade... Era seu terreirão particular... Mas, sem nenhum aviso prévio... Algo inusitado aconteceu...



Como se tivessem atendendo a um chamado interior, das sombras foram surgindo rostos definidos... Rostos famosos... Rostos poéticos... Rostos privilegiados... Rostos de sambistas... Os donos desses rostos apossaram-se, cada um, de acordo com a sua habilidade, dos instrumentos que João Gostoso hábil e delicadamente havia posto no chão, na falta de um local melhor...



Eis a estranheza que João detectara... Os seus o quês e por quês...


Os que haviam conseguido algum lugar para sentar cederam seus lugares para aqueles que agora possuíam instrumentos... Eles acomodando-se como podiam, testaram seus instrumentos... Em seguida o anfitrião, boquiaberto, com os olhos arregalados, que mais pareciam querer saltar das órbitas, com a voz embargada passou a cumprimentá-los:



- Boa noite Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Cartola, Zé Keti, Nelson Sargento, João Nogueira, Paulinho da Viola, Adoniran Barbosa, Beth Carvalho, Jovelina Perola Negra, Leci Brandão...



Eufórica e ao mesmo tempo sarcástica, uma voz bradou no meio do grupo de notáveis, era Luiz Carlos da Vila, que disse:


- Hoje é o Dia Nacional do Samba, e nós viemos aqui para homenageá-lo ou sermos homenageado?



Vários dos presentes balbuciaram palavras desconexas e menearam a cabeça concordando com o sambista... Mal haviam processado a proposição de Luiz Carlos, outra voz vaticinou:


- Nós passaremos, mas o samba jamais morrerá! Cantemos então!


Era Candeia, que em seguida cantarolou:


Deixe-me ir, preciso andar,

Vou por aí a procurar

Rir pra não chorar [...]


Não houve nem tempo para o primeiro refrão... Uma voz, dessa vez não identificada, roubou toda a atenção dos presentes, interrompeu Candeia e os que começavam a acompanhá-lo:



- Esperem, esperem alguém vem chegando...


Ao se aproximar mais do centro da roda, a silueta, visivelmente cansada, foi rapidamente reconhecida... Os olhos de João Gostoso faiscaram de claridade, como nunca antes havia ocorrido em toda a história de sua miserável existência, e este com voz trôpega disse:



- Dona Ivone Lara – primeira dama do samba... Inacreditável!


Aturdido, pensou em voz alta:


- Afinal, em que espécie de delírio me encontro?

Jackeson do Pandeiro


Todas as celebridades do samba presentes, citadas e não citadas, depois de mirarem o venerável semblante da Primeira Dama, lhe pediram a benção, chamando-a carinhosamente de madrinha... Ela, sem se fazer de rogada, humildemente lhes dizia:


- Estou presente meus filhos!


Com um lindo vestido branco, Clara Nunes virou-se para João Gostoso, talvez para despertá-lo do torpor em que ele se encontrava, e lhe perguntou:


- João, na condição de nosso especial anfitrião, o que você sugere que cantemos?


Tomado por uma inenarrável emoção, João sussurrou baixinho:


Não deixe o samba morrer

Não deixe o samba acabar

O morro foi feito de samba

De samba pra gente sambar [...]


A voz inicialmente fraca foi ganhando força e, gozando do privilégio ímpar da companhia dos notáveis... João Gostoso, com os olhos marejados mirava a lua sem parar... Uma outra coisa estranha... Dentre às várias já ocorridas... Alguém, bem no centro do astro iluminado, olhava para ele...


A princípio pensou se tratar de São Jorge, mas não havia cavalo branco nem armadura romana... Ao contrário, o que ele identificava era um homem da cor da noite, com porte de guerreiro, senhor de si e olhar altaneiro... Não sabia de quem se tratava... Talvez mais um delírio, em meio aos sonhos de uma noite de verão... O samba que João escolhera chegou ao fim...




Sem nada saber sobre o que ocorria com o psicológico de João Gostoso, Luiz Carlos da Vila ergueu uma das mãos e conclamou:


- Essa deixa que eu puxo!


E em seguida catou:






Valeu, Zumbi

O grito forte dos Palmares

Que correu terra, céus e mares

Influenciando a abolição

Zumbi, valeu

Hoje a Vila é Kizomba

É batuque, canto e dança

Jongo e Maracatu

Vem, menininha

Pra dançar o Caxambu [...]



O ronronar agudo de um felino despertou João Gostoso de um sono profundo... Com ouvidos treinados ouviu o gato afastar-se... Tudo estava em trevas...
Pensou em voz alta:
- Meu Deus tudo foi apenas um sonho! Tudo não passou de uma fantasia! Quimeras de um sambista...!

João Gostoso estava desolado... Seu relógio interno lhe permitiu arriscar sobre as horas, devia ser umas duas horas da madrugada... Logo teria de levantar... Mas, se quisesse, poderia ir ao Bar Esperança (o último que fecha)... Melhor não, muito longe... Ou ao Bar 20 de Novembro, bem mais perto... Melhor também não, muito tarde... Desistiu de ambos, talvez amanhã, quando viesse do trabalho na feira-livre, que fivava não muito distante da Lagoa Rodrigo de Freitas... Havia algo naquela lagoa que fascinava João...

Sentiu a fronha molhada, como é possível, não estava com calor... Deveria ter chorado enquanto sonhava... Não se importou muito com isso, virou para o lado tentou, com a alma aflita, conciliar o sono... Por onde será que Morfeu andava? Precisava, desesperadamente, voltar a sonhar.



 Cacau

(1) Trecho de uma composição poética.